Chromos
De onde me lembro, começou assim:
- Voce fica ai, sorrindo. Acho otimo. Pura verdade, eu acho ISSO otimo.
Ja fui assim, antes, ai ai, bem antes. Hoje complicou de vez pra mim, voce nao me conhece, por isso e unicamente por isso vale a pena contar;
Todos me odeiam garoto. No inicio gostavam de mim, torciam por mim, aqueles patifes, hoje em dia querem me ver sangrar, pra ver se eu realmente sou de carne,
osso e sangue. E eu sou, nao ha duvidas nisso. Mas eles querem se distrair.
Meu unico amigo, se matou meses atras, ja fazem meses, passa rapido. Fui no enterro, é aquela coisa, nem parece ser a pessoa. É só um monte de carne pele e osso.
A pessoa nao ta mais la. Sinto que ele deve ta olhando pra gente e rindo uma hora dessas, se existisse isso, de exister, pós morte. Acho balela. Mas
vale a pena acreditar, por puro delirio.
- O senhor precisa se levantar, senhor. - disse o garoto uniformizado. Tentou me levantar.
- Nao me levante, estou bem aqui, é aqui que devo ficar. Todos se lembrarao, do dia em que me liquidei. Antes tivesse me matado. mas sou covarde.
- Senhor, eu tenho q te levantar, é meu trabalho senhor.
- Bem notei. É pq te pagam. mas voce nao tem culpa garoto, ninguem tem, nem mesmo os que querem me ver na lama.
Eles estao tao mal quanto eu, só que fingem melhor.
Me levantei. com dificuldade
- Onde está minha bolsa, roubaram minha bolsa, PATIFES.
- Senhor, esta aqui senhor, esta caida do seu lado senhor.
Abri a bolsa, tava tudo la, um livro do Dosto, um do Sartre, raçao pra gato, palheta de guitarra, 50 reais, desodorante rolon.
- Vou me embora garoto. Me desculpa por ter q fazer voce sair nessa chuva. Voce é jovem, ainda acredita na vida. Vá, estou bem.
- Senhor, eu tenho que acompanha-lo até a saida senhor.
- Está me expulsando é? Seu sacana. Se eu tivesse em melhores faculdades, te espancaria agora mesmo. Seu ordinario.
- Sao ordens senhor. eu Sigo ordens senhor. Ninguem pode ficar aqui depois das 23h senhor.
- Seu ORDINARIO. Hahehahaehaha. - Essa risada me pegou de jeito acabei caindo denovo.
- Senhor, vou buscar o carrinho senhor.
- Nunca achei essa palavra um xingamento, "ORDINARIO", "SEU ORDINARIO", isso nao é xingamento nem aqui nem em lugar nenhum.
- Senhor levante se senhor.
- Voce é que nem um robô garoto. Vem ca e me ajude a levantar. - Levantei, com ajuda claro.
- Senhor, agora q está de pé, venha senhor.
- Vamos. Um pé depois do outro, nao é assim tao dificil, as vezes é. É nessas horas que eu tiro o chapeu pra quem anda em passarela. Grande feito.
Fomos andando, andando, ele falou uns 400 "senhor" durante a jornada. Nao vou mentir, cai mais umas 2 vezes mas dei conta de me levantar sozinho. Oxi.
Chegamos ao portao. Fui gentilmente botado pra fora por esse rapaz tao amavel.
- Me desculpa garoto, por todo esse papo de morte, humanos, lama...
Só ouvi o barulho do portao de ferro se fechando.
- La se vai meu unico amigo.
Sai perambulando. Lembro de em certo momento ter deitado perto de um senhor em situacao de rua e la ficado. Nao havia muita
diferenca entre nós. Havia sim, ele tinha um cachorro. Acordei com o cachorro lambendo minha boca. Bicho folgado viu. Nao respeita o sono alheio.
Acordei, sei la que horas, mas o sol tava bem acordado ja. Meu amigo dono do cachorro ja tomava sua cachaça matinal, "pra parar essa dor" foi o que me disse.
Nao quis saber de qual dor ele falava, ja tinha as minhas pra preocupar. Por um segundo lembrei da minha bolsa, olhei pro lado e la estava ela, a usei de travesseiro numa
parte da noite. Fui conferir, tava tudo la.
- Hei amigo, sabe as horas? - perguntei pro dono do cachorro
- É sei nao ué, é sei hora nao. A hora eu peguei. Eu peguei? Peguei uai... - continuou falando coisas sem pé nem cabeça, que nem eu ontem.
- Ta bom, esquece esse papo de hora. Vou ali ja volto.
- ....a hora é boa mesmo. Que ai eu subi, e ele falou que ia me levar preso, e eu falei que sem a Tchulinha eu nao ia... - continuou ele
Sai, tava cheio de fome. Achei um PF. Quentinha 10 reais. Que maravilha é o centro de BH neh.
- Me da duas por favor. - o cara me olhou com cara feia
- SAO 20 REAIS. - Disse ele
- Toma. - Dei a nota de 50, ele ficou virando ela de um lado pro outro umas 30 vezes pra ter certeza que nao era falsa. Nem eu tinha essa certeza, vai saber neh.
- Ta aqui. - me deu as marmita ,o troco, e la fui eu ver meu novo e unico amigo. Que resolvi apelida-lo de Chromos.
- Aí chromos, toma uma marmita. - ele abriu ja meteu a mao na comida. Vou te falar viu, chromos ta sem freio. AChei legal que ele deu quase metade pra Tchulinha.
- Aí chromos, eu nao sou da terra nao - resolvi encher o saco dele, pra ver se ele se divertia, ou eu. - Eu vim la de Marte, meus pais ainda estao la,
volto amanha, quer ir comigo? - Olhei pra ele virando os olhos pra fingir ser ET. Nao sei se ET faz isso mas foi no improvisso.
- Sai fora, Eu vou nada. Marte eu vou Nada. Chispei. Vou nao.
- ta bom, vamos comer. - Chromos leva tua a sério.
Comemos como crianca em dia de cosme damiao. Deu um sono, resolvi puxar mais uma palha ali mesmo. Chromos fez o mesmo. Só Tchulinha que tava toda alerta olhando um gato que tava na janela da casa ao lado.
Pobre Chromos, pelo jeito que se porta se veste e tudo, nota se que está a anos na rua. Ja deteriorado pelo tempo, pela falta de zelo, cuidado, carinho. Anos sendo maltratado, chutado,espancado e sabe se la mais o que.
Acordei, chromos ja tava juntando papelao num carrinho de supermercado do outro lado da rua, Tchulinha tb tava la tentando brincar. Levantei, fui embora. Dei tchaw pra Chromos mas ele
nao deu muito bola.
Sai andando, parei no primeiro bar que vi. Nao no primeiro, mas no primeiro que parecia mais agradavel. Cadeiras velhas de plastico, amarelas ou vermelhas, karaoke com uns bebados cantando Gian e Giovanni. Tava otimo.
- Garçom, eu gostaria por favor...
- Só um minuto senhor ja volto. - passou correndo com uma garrafa na mao, tres copos. Deixou na mesa que tinha tres mulheres, voltou pra falar comigo.
- Pois nao senhor?
- Quanto ta a bhrama?
- 8 reais senhor.
- e a Original?
- 10 reais senhor.
- pode ser uma original por favor. - Saiu andando rapidamente. Garçom. Tai uma profissao que eu admiro. A pessoa anda uns 100 km por dia, ta sempre de bom humor, tem que ta neh. E ainda toma esporro.
Estava eu com um livro do Celine na bolsa, coisa que eu nao havia notado na noite anterior, e olha que isso é dificil por se tratar de um livro grosso. Mas fiquei foi alegre, tava enjoado de crime e castigo.
Seria bom ler algo novo.
Abri a pagina, ja começou assim: "O que interessa era se devotar ao monstro o mais cedo possivel, á besta sem coracao e sem comedimento!...
Ela nos devorara a todos, a besta, Ferdinand, é inevitavel..." escreve bem neh.
- O moço, quer comprar um amendoin? - disse um garoto de aproximadamente 8 anos.
- Nao tenho dinheiro garoto. Tudo que eu tenho ta contado pra tomar 3 cervejas. Nada a mais, nada a menos.
- Ta bom moço, o que voce ta lendo?
- Um escritor frances que ninguem gosta mais.
- EU to aprendendo a ler. - disse
- E voce gostaria de ter um livro?
- Eu nao. Quero um celular, pra jogar Roblox.
- Nao faço ideia de que jogo seja esse garoto.
o Garoto saiu. Foi tentar vender amendoin pras moças. Nao obteve sucesso.
Virei pra elas e disse.
- Ei moças. pq nao compraram o amendoin do menino?
Elas se entre olharam com cara de desprezo e nojo, e nao responderam.
- Senhor, se voce perturbar a clientela denovo, terá que se retirar. - disse o garçom.
- Vou terminar essa cerveja e ja me vou. Nao precisa se preocupar. - Nao estava nos meus planos arrumar problemas.
Estava eu la lendo meu livrinho, tava nem lembrando que havia 2 dias que eu nao tomava banho, ou voltava pra casa, mas parece q as moscas lembravam. Ficavam ali me rodeando. Ordinarias hehe.
Um grupo de jovens, bem vestidos chegou e sentou na mesa ao lado das moças.
Tentei concentrar no livro mas tava dificil, eles conversavam alto. "Aposto que voces demoram horas pra se arrumar." disse um deles pra elas. "Eu sou rapida, 20 minutos e to pronta" respondeu uma.
"pra sair bonita assim, demora no minimo 3 horas HAHAHA"... rebateu um deles e todos riam.
Voltei a tentar focar no Celine.
"Eu acredito que cada um é responsavel pelo seu sucesso financeiro sabe.." Disse o mesmo rapaz tempos depois..."nao de o peixe, ensine a pescar."
continuou -...a pessoa ta morando na favela, 1, 2 anos, eu entendo, mas ficar la a vida toda? É porque quer. Se estudar e correr atras, consegue sair. Veja o Silvio Santos, era Camelô, e hoje ta ai, MILHONARIO.
"É isso ai." Concordaram todos
Tomei essa unica garrafa e resolvi ir embora. Esse bar tava me dando nos nervos ja.
Paguei a cerveja, sai andando pensando nessa historia que o Celine tava falando, de se entregar, foi ai que ouvi uma delas falar: "foi esse bebado ai"
Nisso, o que acreditava em meritocracia se levantou, e gritou em minha direção:
- Aí ô Mendigo. Mexeu com elas enquanto tavam sozinhas? Mexe agora.
Olhei pra tras pra ver se era realmente comigo que falava. E era. Pensei em explicar a historia, mas entendi que eles nao iriam me ouvir, entao o melhor a se fazer nesse momento é apelar pra violencia. Ou
ao menos esperar por ela.
- Agora ficou mudo? Mendigo de merda. - repetiu, achando que isso ia me abalar.
- Eu nao sou sujo assim todo dia moço, me desculpa. - retruquei - É que eu dormi na sua casa ontem, aquele chiqueiro. - foi a primeira coisa q pensei.
- o que voce falou? SEU MENDIGO. - Ficou todo vermelho de odio.
Afastou a cadeira que estava na frente, estufou o peito e veio. Enfiei a mao no bolso e peguei meu soco ingles, ta sempre ali, bolso direito, parte de tras.
Ele veio me dar um empurrao no peito, do qual desviei e sentei lhe a mao no meio do nariz. Nunca vi tanto sangue. Coisa bonita de se ver. Como dizia meu primo "desce a groselha pra todo lado"
Os amigos levantaram, e como nao sou bobo, sai correndo, obvio.
Agora estava eu sujo, suado e sobrio. Aquela correria toda tinha curado minha cerveja. Triste. Comecei a procurar um bar com menos jovens.
Achei um, só gente velha. Uns mais acabados que os outros, mas ninguem aos meus pés. Eu era o mais acabado dali.
- Desce uma branquinha ai. - dei um tapa no balcao.
- Sao 50 centavos. - dei 10 reais.
- volta só 9 de troco que vou querer mais uma. - dei outro tapa no balcao.
- Olha aqui, se oce continuar com essa palhaçada de dar tapa no balcao, eu vou dar um igual na sua cara.
- Desculpa. - Sei reconhecer quando to errado.
Nesse bar fiquei até meu dinheiro acabar. Voltei la pro Chromos, ele estava no mesmo lugar. Tchulinha me reconheceu e abanou o rabinho. Como é bom estar de volta.
Deitei ali no meu papelao. Dormi como um anjo.
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